sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O que revela a casa de tolerância


ATENÇÃO: esse texto pode conter spoilers. Leia por sua própria conta e risco.
L’Apollonide – os amores da casa de tolerância (L´Apollonide – Souvenirs de la maison close) (2011), do diretor francês Bertrand Bonello, retrata o cotidiano de um bordel parisiense em 1900. A atmosfera claustrofóbica, a rotina repetitiva e a falta de perspectiva das prostitutas, envolvem e causam angústia no espectador. 
A prostituição como negócio legalizado e respeitado
Apollonide é uma casa de tolerância famosa e respeitada, que atraí a clientes ricos e influentes.  A Madame (Noemie Lvovsky) é a dona da casa, responsável por manter a ordem, controlar as finanças, gerenciar as garotas e garantir que seus clientes sejam sempre bem atendidos. Ela, contudo, também garante que as moças estejam sempre em dívida com ela, tornando impossível a saída delas da casa e a perspectiva de uma mudança de vida.
É com a chegada da novata Pauline (Iliana Zabeth), uma jovem de apenas dezesseis anos, que conhecemos as regras do negócio. As moças devem estar sempre limpas e perfumadas, a Madame fornece o sabão, mas não os perfumes. As moças também só podem sair da casa acompanhadas por um homem ou pela Madame, caso contrário, serão acusadas de solicitação, o que, ao contrário da casa de tolerância, não é legalizado.
É interessante notar que Pauline primeiro escreve à Madame pedindo seu ingresso na casa, destacando suas qualidades e elogiando a respeitabilidade do negócio. Quando chega, a garota afirma que traz consigo uma carta de seus pais, que a autorizam a trabalhar no local.


As mulheres como mercadoria
O negócio gerenciado pela Madame pode ser visto como respeitável, mas as garotas que nele trabalham não são elevadas ao mesmo nível de respeito. Ainda que um ou outro cliente se mostre mais romântico, traga presentes e até mesmo fale em casamento, na prática elas são um corpo à venda, um meio de realizar as fantasias e os fetiches mais estranhos, sujeitas ao risco de doenças e a gravidezes indesejadas.
Quando a jovem Pauline justifica sua vontade de ser admitida à Apollonide como um desejo de liberdade, a Madame ri, dizendo-lhe que a casa de tolerância é o oposto da liberdade. De fato, com as regras impostas as garotas, às dividas e as exigências dos clientes, a liberdade realmente lhes falta. A angustiante cena do exame médico, realizado sobre a mesa do refeitório, com todas as garotas presentes na sala, esperando lado a lado em camisolas brancas e meias pretas iguais, assistindo umas às outras, lembra uma inspeção de controle de qualidade de uma fábrica, em que a saúde e o bem-estar das moças não é tão importante quanto a garantia de que estão em boas condições para serem oferecidas aos clientes.
Quando um cliente menciona um estudo, realizado por uma mulher, que afirma que a circunferência da cabeça das prostitutas, assim como a dos criminosos, é menor do que as das demais pessoas, a objetificação das moças beira à sua criminalização e a sua redução a seres, como o estudo afirma, “com cérebros menores e intelectualidade comprometida”. “A prostituta é a versão feminina do criminoso”.
Essa objetificação contrasta com a humanidade e a sensibilidade dignificante que o diretor busca nessas mulheres, mostrando as brincadeiras entre elas durante as refeições, o tédio languido da espera por clientes, a confiança nas juras de amor de alguns, a felicidade jovial e quase infantil no contato com a natureza durante um piquenique ao ar livre em um raro momento de folga.


A mulher que ri

O rosto de Madeleine (Alice Barnole) é o primeiro que vemos em cena. Ela conta a um cliente regular um sonho que teve com ele. Em seguida, o cliente pergunta se pode amarrá-la e ela consente, já que uma das regras da casa é que as mulheres se adaptem para satisfazer às vontades dos homens. O rapaz, então, a ataca com uma faca, cortando suas bochechas ao lado dos lábios e criando nela uma cicatriz que desfigura seu rosto, dando-lhe um permanente sorriso vermelho e tenebroso.

Apesar de traumatizada com o episódio, Madeleine continua a trabalhar na casa, ajudando em tarefas como a lavagem de roupas e a preparação de comida. À noite, porém, seu corpo continua à venda, mas não como o das outras garotas. Com o novo apelido de “a mulher que ri”, Madeleine agora é vendida como uma curiosidade, como uma atração de um circo de aberrações. Ao encontrar problemas financeiros, a Madame oferece Madeleine a um grupo de ricos excêntricos que realiza festas servidas por mulheres nuas. Exibida como a curiosidade que é, a mulher que ri é acariciada, apalpada, inspecionada, enquanto permanece sentada com a expressão impassível em uma cadeira. A transformação de uma vítima de um ataque violento e cruel em uma fonte de renda alternativa é o símbolo máximo da vulnerabilidade de todas as mulheres da casa. As moças, e em até certo grau a Madame, todas tem compaixão por Madeleine, pois, além de gostarem dela como amiga, todas sabem que poderiam ter sido elas as vítimas.

É no final do filme que Madeleine reencontra um pouco de sua dignidade. Aproveitando um baile de máscaras, ela pode novamente estar no mesmo ambiente que os clientes, e volta a ser escolhida por um deles, dessa vez simplesmente por ser uma mulher, e não mais por ser considerada uma aberração curiosa.

A edição e a trilha sonora

Contrastando com a ambientação e a retratação fiel e verossímil de uma época específica: a virada do século IX para o século XX, temos a edição nem sempre linear, muitas vezes apresentando telas divididas e repetindo cenas, e a trilha sonora com músicas modernas. A mistura de lembranças e sonhos com o presente gera uma narrativa que oscila entre a introspecção das personagens, em especial Madeleine, e a rotina sufocante do bordel.

Torna-se impossível não compartilhar da sensação de claustrofobia e impotência daquelas mulheres. L’Apollonide é um filme que retrata com inteligência uma fatia de interação social, sem julgá-la explicitamente, limitando-se a expor uma história ao juízo do espectador, sem deixar de lembrar, ao final, que a profissão mais antiga do mundo – e suas conseqüências, para o bem ou para o bem ou para o mal – ainda é a realidade de muitas mulheres.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Blaze – or Love in Time of Supervillains (Livro)



ATENÇÃO: esse texto pode conter spoilers. Leia por sua própria conta e risco.

Escrito pela americana Laurie Boyle Crompton, Blaze – or Love in Time of Supervillains é um livro sobre crescimento pessoal e descobertas adolescentes, recheado de referências à histórias em quadrinhos e seus personagens.

Blaze tem dezessete anos, vive com a mãe e o irmão, Josh, de treze anos. Josh é a estrela de seu time de futebol e Blaze é a responsável por levá-lo, juntamente com mais três amigos do time, a todos os jogos do campeonato em sua minivan. O pai de Blaze deixou a família poucos anos antes para se mudar para Nova Iorque e perseguir seu sonho de ser ator, fazendo com que a mãe de Blaze precise trabalhar horas extras e com que a própria Blaze assuma responsabilidades paternas, que além de ser a motorista do seu irmão incluem fazer o jantar e organizar a casa. Estranhamente, apesar de se cansar dessa rotina e querer “ter uma vida” para poder sair com os amigos, Blaze não culpa seu pai pela carga extra de responsabilidades, mas sua mãe. O pai continua um herói aos olhos dela, especialmente por ser fã de histórias em quadrinhos – como ela – e ter deixado no porão de casa uma coleção gigantesca de revistinhas, que remontam até a década de 1960.

Blaze também gosta de desenhar quadrinhos e freqüentemente trabalha em sua criação, a super-heroína Blazing Goddess, que é um alterego da própria Blaze. Como toda a adolescente, ela tem uma queda por um garoto bonito da escola, no caso, Mark, que também é o técnico do time de futebol do irmão. Quando Mark finalmente percebe Blaze ao lado do campo durante uma partida do time, ela se sente nas nuvens por finalmente ter a perspectiva de realizar seus sonhos românticos com ele.

Uma garota muito tonta, ou apenas uma adolescente normal?

Para os leitores mais velhos, Blaze pode parecer uma garota extremamente tonta. Ela se apaixona bobamente por um garoto que está claramente a usando, faz sexo sem estar tomando pílula anticoncepcional e sem usar preservativo, confiando apenas que o rapaz “vai tirar a tempo” - o que não elimina a gravidade da falta de preservativo, já que o risco de uma gravidez ainda é alto, e o risco de uma DST é imenso. Ela não enxerga a falta de caráter de seu pai, que não apenas se separou de sua esposa, mas também abandonou a família completamente, nunca mais visitando os filhos e apenas conversando com eles pelo telefone quando ele precisa de alguma coisa, e não para saber como os filhos estão, dar apoio ou se mostrar presente.

A verdade é que Blaze é tão tonta quanto qualquer adolescente. Sim, olhando para trás, os erros da adolescência do leitor podem ser completamente diferente dos dela, mas estão lá. Quem nunca cometeu uma burrada fenomenal aos dezesseis/dezessete anos? O importante em Blaze é que ela aprende com seus erros, por mais raiva que eles façam o leitor passar e a personagem sofrer.



A preocupação com o sexo – o arrependimento da primeira vez

 Apesar de tonta como toda a adolescente, Blaze demonstra uma preocupação exagerada com sexo. Ela se auto-intitula a “Garota Super Virgem” e parece ansiosa para deixar o estigma da virgindade para trás. Ela não tem grandes fantasias românticas para sua primeira vez, tratando o assunto mais como um quesito social no qual ela está atrasada, como alguém que atingiu a idade legal para dirigir, mas ainda não tirou a carteira de motorista, e vê todos os amigos guiando carros pelas ruas enquanto precisa andar a pé.

Independente de como a perda da virgindade seja encarada, Blaze é como muitas adolescentes: tem a primeira relação sexual por impulso e posteriormente se arrepende. Blaze é uma personagem que sintetiza os arrependimentos mais comuns das adolescentes em relação à primeira relação sexual:

- O parceiro: Mark finge estar interessado nela, mas não tem o mínimo de respeito pela garota – e até mesmo de amor-próprio – para se dar ao trabalho de usar um preservativo. Em seguida, ele simplesmente a ignora, deixando-a de coração partido e provando que somente queria usá-la. Em resumo, um verdadeiro babaca;

- O local: Blaze tem sua primeira vez com Mark no banco de trás de sua minivan, estacionada ao lado de um campo de milho. É comum meninas se arrependerem por “locais improvisados”.

- O momento: Blaze decide perder sua virgindade em um momento de pura empolgação hormonal, já que os beijos do rapaz são incríveis, e a sessão de amassos é obviamente excitante.  Além do que, há a pressão social para que ela deixe de ser uma garota “virgem e sem-graça”. Ter uma relação sexual inspirada por pura excitação e hormônios é algo a que qualquer ser humano está sujeito, mas que também inspira muito arrependimento.

- A falta de preservativo: com a empolgação hormonal falando mais alto, Mark não usa preservativo e Blaze não encontra força de vontade dentro de si para questioná-lo.

A verdade é que esses arrependimentos são em grande parte motivados pela visão que se tem da sexualidade feminina. É recente, em termos históricos, a liberdade sexual da mulher, em que o fato de uma mulher não se manter virgem até o altar não é mais motivo de revolta (em grande parte do mundo ocidental, pelo menos). Ainda assim, a perda da virgindade feminina ainda é observada sob uma ótica de quase misticismo. O estigma de que “a primeira vez” deve ser especial, com alguém que se ama, ou perfeitamente romântica ainda assombra a muitas garotas. E assombra porque é muito difícil de se realizar.

Para não serem assombradas pelo arrependimento de não terem esperado um garoto próximo a um príncipe encantado em uma cama com lençóis de seda e pétalas de rosas para perderem sua virgindade, as garotas precisam ser incentivadas (mais do que ensinadas) a somente fazerem sexo quando estiverem prontas e seguras de si, sempre com preservativo, e que hormônios são difíceis de resistir, mas que um pouco de força de vontade para parar e refletir se os dois primeiros quesitos estão sendo seguidos antes de continuar é necessária. E por último, e mais importante, é preciso que as mulheres parem de julgarem umas às outras – e a si mesmas – vadias por decidirem fazer sexo pela primeira vez.

Bullyng ao vivo e virtual

Para tentar “acelerar” a relação entre Blaze e Mark, a amiga de Blaze, Amanda, consegue tirar uma foto da garota de sutiã e enviá-la para o celular do garoto. Blaze, a princípio, se irrita com a atitude da amiga, mas logo a perdoa ao ver a atenção que Mark dá à foto. Quando Mark vira as costas para Blaze e ela vinga seu coração partido, porém, o garoto divulga a foto seminua dela na internet. O efeito de tal divulgação é o mesmo que infelizmente temos visto em quantidade na vida real recentemente: a garota é xingada por conhecidos, desconhecidos e anônimos de “vadia” e outras coisas do mesmo calão. O inferno de Blaze se completa quando ela passa a ser xingada nos corredores da escola, diariamente, além de ouvir propostas indecentes de praticamente todos os rapazes ao seu redor.

O que acontece com Blaze é revoltante, principalmente ao se ver que a escola não toma nenhuma providencia séria contra os geradores e os perpetuadores do bullyng, e que a própria Blaze desiste de processar Mark. A decisão de não mostrar conseqüências aos agressores, apenas à agredida, além do sentimento de impotência da última, é uma abordagem interessante por parte da autora. É o modo de Crompton demonstrar o mundo cruel em que vivemos, deixando o leitor com um gosto amargo de injustiça ao ler o livro, e não escondendo o fato de que crimes como esse nem sempre recebem a punição que deveriam. A história de Blaze serve como denúncia ao que acontece com muitas garotas, e que sirva de exemplo para que as medidas corretivas (e, principalmente, preventivas) à esse tipo de atitudes, inexistentes no livro, sejam aplicadas na vida real.

Crescer é sofrer, e vice-versa

A história de Blaze é a história de uma adolescente tendo suas ilusões quebradas pela primeira vez, sofrendo – e aprendendo – com isso. Seja a ilusão de que Mark gosta genuinamente dela, seja a ilusão de que seu pai é um cara legal, todas elas se partem em seu devido tempo. Ela aprende a perceber quem realmente está do seu lado, como seu irmão Josh, estranhamente maduro para seus treze anos, e quem não está, como a amiga Amanda, mais interessada em se dar bem do que em ser uma verdadeira amiga.

O tom geral do livro é leve e engraçado, apesar dos momentos tristes e da temática do bullyng. Alguns personagens secundários poderiam ser melhor aproveitados, como a avó, que só serve para dar um conselho aleatório: “encontre a sua voz, Blaze”, e depois perder a importância, se tornando quase irrelevante. Em geral, o livro entretém e transmite a mensagem a que se propõem. Apesar das atitudes da personagem principal serem muitas vezes difíceis de aceitar do ponto de vista de um leitor mais velho, a obra é interessante para provocar debates entre o público a que se destina, abordando temas atuais e complexos. 

Voltando

Depois de mais de um ano sem atualizações, sinto que é hora de retomar as atividades do Exercine. Me sinto motivada novamente a produzir e postar. Obrigada a todos os que me pediram para voltar (online e offline) e que me incentivam todos os dias. Espero corresponder à altura.

Sem mais, vamos lá!