Durante a primeira meia hora de filme, principalmente na
sequência de abertura, a sensação transmitida por O Artista é a de que se trata de um reboot mudo e muito pretensioso de Cantando na Chuva (1952). O artista sensação do momento, George
Valentin (Dujardin), acaba de apresentar seu mais novo filme. Na saída, esbarra
em uma fã, Peppy Miller (Bérénice Bejo), que acaba saindo nos jornais ao lado
de seu grande ídolo.
Peppy Miller (Bérénice Bejo) conhece seu grande ídolo, George Valentin (Dujardin). |
Ao iniciar seu mais novo filme, Valentin é apresentado à
mais nova tecnologia do cinema: o som direto. Cético, o ator se recusa a
abraçar a novidade, convencido de que o público quer vê-lo, não ouvi-lo. Peppy,
por sua vez, sobe passo a passo os degraus da fama, começando como figurante e
chegando a nova queridinha de Hollywood justamente fazendo filmes com som
direto, os famosos “talkies”. A situação se inverte: Peppy se transforma na
estrela, enquanto Valentin perde tudo e é esquecido por produtores e público.
As semelhanças com Cantando
na Chuva dão uma freada quando Valentin despenca rumo ao fundo do poço. Ele
passa a beber constantemente e precisa penhorar seus ternos e leiloar suas
antigas posses para sobreviver. Seu
chofer, Clifton (James Cromwell), contudo, segue fielmente a seu serviço ainda
que o patrão não pague seu salário há mais de um ano, representando um dos
muitos detalhes do filme que são fiéis a estética do cinema dos anos 20: o
empregado leal e dedicado.
Valentin no fundo do poço: a teimosia e o orgulho no caminho da adaptação. |
Apesar de seguir com bastante fidelidade a estética dos anos
20, Hazanavicius reserva algumas boas surpresas ao longo da projeção. Por
exemplo, temos a excelente sequência em que o protagonista, preso entre sua
dificuldade em aceitar a novidade do cinema falado e a sua constatação da
realidade de que este suplantará o cinema mudo, escuta claramente todos os sons
ao seu redor, mas é incapaz de articular uma palavra que seja.
A relação de oposição entre Valetin e o cinema falado se
estabelece logo na cena de abertura, em que o ator interpreta um personagem que
é torturado com descargas elétricas por homens que lhe pedem que “fale”, enquanto
ele responde (por meio de cartelas) que “jamais falará”. Já perto do final,
surgem na tela as mil bocas que tanto o atormentam, rindo e gritando para ele, mas
em silêncio para o público.
A escolha de abordar uma temática de transição de tecnologias
e de mudanças no fazer cinematográfico é simbólica. A tecnologia digital e o
cinema em 3D são as transições que atualmente presenciamos, e as discussões em
torno delas se intensificaram recentemente. Por enquanto, cineasta nenhum foi à
falência por se recusar a aderir ao modelo digital, mas ninguém sabe ao certo
quanto tempo a película ainda vai sobreviver. Muito defendida, em parte por
defensores de sua suposta “melhor qualidade de imagem”, em parte por
nostálgicos saudosistas, parece que ainda vai durar algum tempo. Ignorar
completamente o novo por simples orgulho, como faz o personagem de Dujardin no
filme, porém, não é saudável.
Além de uma temática perfeitamente alinhada com as discussões
em pauta, O Artista cativa o público
pela nostalgia que traz consigo e pela ousadia em apresentar um filme mudo mais
de oitenta anos após o declínio desse gênero. Empolgada com esse contexto,
principalmente com o quesito nostalgia, a Academia concedeu seus principais
louvores a ele. Hazanavicius nos lembra que, por mais que o cinema mude, é
sempre preciso olhar ao passado, à origem, porque o cinema pode mudar, mas
nunca deixará de ser o que é. E foi esse gentil lembrete que o Oscar escolheu
premiar.
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